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O espaço, enquanto dimensão social, é hoje, e desde há algumas décadas, objecto de inúmeros estudos em todas as vertentes das Ciências Sociais. No caso da Antropologia, o espaço foi um tema abordado frequentemente por vários autores, e o estilhaçamento temático da disciplina, fruto das rupturas teóricas e metodológicas das várias pós-modernidades, levou à constituição de um campo disciplinar específico, denominado Antropologia do Espaço.
     Este é também o nome do livro aqui apresentado – Antropologia do espaço –,  em edição de 2010 pela Assírio & Alvim, revista e aumentada, depois de três edições anteriores pela Celta Editora, e que se define como “um guia para um possível percurso de leitura” (p. 7). O texto visita os principais contributos teóricos para este campo de estudos, intercalando citações com enquadramentos que fornecem as sínteses e conexões conceptuais entre diferentes protagonistas e escolas.
     A sua autora, Filomena Silvano, antropóloga, alia uma vasta experiência de investigação e de ensino nessa área com frequentes contactos com o mundo da arquitectura, motivados pelos seus temas de trabalho que, relacionados também com as questões do espaço enquanto fenómeno social e identitário, construído e representado, vão tocando frequentemente os interesses de arquitectos (entre outros).
      Esta obra sistematiza, de forma inteligente, as referências teóricas incontornáveis para uma compreensão das problemáticas relacionadas com o estudo do espaço, fornecendo uma sólida introdução ao tema. O formato em que está organizado o livro, como uma panorâmica das principais questões antropológicas associadas ao espaço, leva-nos rapidamente para campos de reflexão distantes e, muitas das vezes, contraditórios, em relação às ideias essencialistas, que frequentemente temos, de conceitos como “lugar”, “casa”, “urbanidade”, “cidade” ou “mobilidade”, para citar alguns exemplos. É, por isso, uma ferramenta de grande valor didáctico para qualquer interessado no tema, sendo de particular importância na formação dos arquitectos pelo modo como os pode alertar para a complexidade das inúmeras dimensões que o seu trabalho influencia, muitas vezes de maneira dramática.
     O texto é constituído por três partes, antecedidas por uma apresentação, que correspondem aos principais objectivos da autora: “Primeiro, transmitir aos leitores a informação teórica e etnográfica que constitui o património mais clássico da Antropologia do Espaço; segundo, pô-los em contacto com obras que foram fundamentais para a afirmação académica do referido campo; e, terceiro, enunciar algumas das propostas que se mostraram mais eficazes na abordagem dos espaços contemporâneos.” (p. 7).
     A primeira parte é dedicada ao património disciplinar, ou seja, a textos que, não sendo centrais nas obras dos seus autores, contribuíram para a posterior autonomização do espaço enquanto campo de estudos. Somos introduzidos aos contributos da escola sociológica francesa (através de Émile Durkheim, Marcel Mauss e Maurice Halbwachs), nomeadamente à tomada de consciência da natureza social do espaço, à dialéctica entre a sua materialidade e às suas representações ou à sua importância como suporte dos quadros sociais da memória. Inserindo-se na sucessão destes autores, e só possíveis graças a eles, surgem as propostas de Claude Lévy-Strauss, como a de relacionar a divisão social com uma diferenciação das representações do espaço, ou a da relevância das relações entre “a estrutura do espaço e as identidades colectivas” (p. 25).
     Mais adiante, outros autores (como Henri Lefebvre ou Raymond Ledrut), que vão retomar estes trabalhos, complexificando e rejeitando a linearidade das relações entre o espaço e a organização social.
     Nesta lógica de encadeamento de escolas de pensamento, é também contextualizada a produção da escola de Chicago (representada por autores como Robert Park e Louis Wirth) na continuidade das formulações de George Simmel e de Walter Benjamin, sobre conceitos como “mobilidade” e “cosmopolitismo”, usados para abordar e definir uma realidade social que começava (nos finais do século XIX e princípio do século XX) a despertar o interesse por parte das ciências sociais: as grandes cidades. É também sobre mobilidade e cidades que trabalham a dupla Jean Rémy e Liliane Voyé, porém num contexto temporal muito diferente, já no final do século XX. Estes são os últimos autores referenciados neste primeiro conjunto, e a sua importância advém de colocarem em causa a divisão urbano/rural, caracterizando a urbanidade como um processo marcado pela mobilidade e chamando a atenção para a porosidade e interpenetração dos dois universos.
     Na segunda parte, “Propostas para um novo campo disciplinar: a Antropologia do Espaço”, Silvano descreve como a conjuntura do mundo da arquitectura e do urbanismo nas décadas de 1960 e 1970, nomeadamente a crítica ao urbanismo moderno e à falta de ligação da arquitectura com as necessidades específicas das comunidades que pretende servir, foi importante nas mudanças teóricas que levaram à autonomização da Antropologia do Espaço.
     Instigados pelas transformações do fim da modernidade, autores como Edward T. Hall ou Françoise Paul-Lévy e Françoise Segaud vão direccionar o seu trabalho através de uma atitude crítica da hegemonia das determinações culturais ocidentais nas formas de produção do espaço, defendendo a “observação do espaço dos outros como prática intelectual indispensável para criar distanciamento face ao nosso próprio espaço” (p. 64). O novo campo de estudo apontava para a importância da análise das variâncias culturais para a construção social do espaço, como desenvolvido por Hall em 1966; e para o estudo “[d]os mecanismos que ligam o espaço ao social e ao cultural, por forma a constituir as identidades” (p. 71), proposto por Paul-Lévy e Segaud em 1983.
     A fechar este capítulo, e colocando-nos num contexto mais recente, é-nos apresentada uma colectânea organizada por Setha M. Low e Denise Lawrence-Zuñiga em 2003, na qual as autoras procuraram reformular o aparelho conceptual da Antropologia do Espaço para dar conta das mudanças que vinham ocorrendo no mundo desde as décadas de 1980 e 1990, com as temáticas relacionadas com a globalização, transnacionalismo ou as novas formas do “local”.
     A terceira e última parte deste livro é aquela onde encontramos os pontos de contacto mais óbvios com o pensamento sobre a arquitectura contemporânea, o que não causará espanto já que são apresentados contributos de alguns dos autores que configuraram, nas ciências sociais, o pós-modernismo (um movimento que também abalou a arquitectura dos finais do século XX, e que é essencial para a compreensão do que se passa hoje na contemporaneidade). O capítulo é dedicado ao conjunto crítico que, desde os anos de 1980, questionando os fundamentos disciplinares de toda a Antropologia clássica, pôs em causa muitas das formulações, até então produzidas, sobre o espaço.
     Para Filomena Silvano, as quatro ideias que inclui neste conjunto – as “heterotopias” de Michel Foucault, os “não-lugares” de Marc Augé, as “multilocalidades” de Margaret C. Rodman, ou as “ethnoscapes” de Arjun Appadurai –, “foram, nas últimas duas décadas, referências inspiradoras, e que se tornaram entretanto incontornáveis” (p. 84). Trata-se de conceitos que procuram dar significado antropológico a muita da etnografia dos novos espaços: as prisões, os hospitais psiquiátricos ou os lares de idosos, que, para Foucault, representam exemplos de “heterotopias”: “lugares que estão fora de todos os lugares, mas que, no entanto, são localizáveis” (p. 86); ou os aeroportos, auto-estradas ou grandes superfícies, que para Augé são reveladores do que chamou “não-lugares”: espaços que se afastariam da ideia tradicional de lugar por não serem relacionais, identitários ou históricos. Este questionamento da ideia de lugar, que faz emergir a importância de um outro conceito, o de “fronteira”, também é central na concepção das “multilocalidades” proposta por Rodman, ao pretender dar conta da multiplicidade de agentes e de dimensões envolvidos nas construções identitárias associadas aos lugares; ou de Appadurai, que propõe um conceito que convoca a ideia de paisagem social como forma de descrição dos percursos complexos e da mutabilidade do espaço no mundo contemporâneo – as “etnhnoscapes”.
     Toda esta viagem que documenta as etapas de construção teórica da Antropologia do Espaço, a sua autonomização como campo disciplinar, bem como os seus contributos mais recentes, constitui um excelente exemplo de divulgação científica e pedagógica de um tema crucial, quer para as Ciências Sociais quer para a Arquitectura. A falta de apoio, no campo da teoria social, que poderão sentir muitos arquitectos e urbanistas (actores com os quais contamos, actualmente, para a construção e o planeamento do espaço significante) será eventualmente responsável por consequências graves e duradouras a vários níveis. Porque alertam para a complexidade das dimensões sociais, simbólicas e identitárias do espaço, as questões despertadas pelas várias abordagens apresentadas por Filomena Silvano são, então, essenciais para lidar com os desafios que o mundo contemporâneo apresenta à prática e ao pensamento arquitectónicos.|


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